CAPITULO I
O mar está alto.
As vagas espumam ao colidirem com as rochas.
O céu anilado desencobre, de quando em quando, o sol matinal, que rejubila e queima.
E as ondas rolam na praia dourada, de areia fina e limpa.
A brisa da manhã, fresca, emana já o cheiro do óleo de coco dos corpos estirados dos veraneantes.
O areal vai enchendo, a pouco e pouco, de toalhas coloridas e sombrinhas, quais cogumelos multicor semeados ao acaso.
Os pés nus do Zé pescador, calcam a areia molhada, sem pressa.
Vem só, cabisbaixo, puxando a rede vazia.
Os ombros murchos tisnados pelo sol, vergam pelo peso de anos e anos de faina no mar. Mas desta vez está só, nem de peixe vem acompanhado.
E continua a caminhar, deixando para traz o rasto do desânimo de uma pescaria infrutífera. E logo a espuma apaga o rasto deixado, levando com ela a tristeza, deixada ao esquecimento. Passa invisível. Passa só, pelo meio de centenas.
E continua a caminhada de corpo vergado de angustia. Sobe os degraus de pedra, ao canto da praia e atravessa a rua sem olhar, direito à tasca do retiro. Ali, pede um copo de tinto. Sem tirar os olhos do balcão, emborca-o de um só trago. Torna a encher, torna a beber.
- Então Ti Zé pescador, a faina foi má ? - Quis saber o taberneiro.
Anuiu com a cabeça ainda sem levantar o olhar.
- Amanhã o dia será melhor... - tornou o tasqueiro.
Bebeu mais um copo. Tirou duas moedas do bolso e saiu para a rua.
A tasca encheu-se repentinamente com um bando de turistas barulhentos e alegres.
A rua estreita de calçada fazia-o tropeçar de quando em vez. Com o corpo cansado e os olhos turvos, o vinho fazia-o embicar em qualquer paralelo mais saliente; e assim foi cambaleando até à porta azul da sua casa branca e baixa.
Tia Alice, já tinha saído para a vila, com uma trouxa de roupa lavada, para entregar. Mas não se esqueceu de deixar na mesa, o prato e a panela tapada, com a sopa para o marido. Este nem olhou. Largou a rede no chão e foi directo para o quarto.
Mal caiu na cama, adormeceu profundamente.
* * *
O sol levantou até ao alto.
A praia ficou apinhada.
Depois o sol tornou a baixar, lentamente, e quando começou a deitar-se sobre o azul do oceano, a praia já estava vazia.
Vazia !
Não havia ninguém.
Só o Zé pescador voltava ao mar. Carregando a rede ao ombro, até para lá dos rochedos, onde se encontrava o pequeno bote, o " Zé Maravilhas ".
Meteu-se nele e remou firmemente, em direcção ao sol posto, afastando-se da costa.
Ninguém mais viu o Zé pescador!...
O sol tornou a levantar-se.
O mar continuou a espumar na areia.
A praia começou a encher.
No ar, o odor de óleo de coco.
Os cogumelos começaram a abrir no meio do areal.
Mas, junto ao mar, na areia molhada, não havia nada.
Não havia marcas dos pés descalços do pescador.
As vagas não arrastavam a angustia e a tristeza de outra pescaria falhada.
O Zé pescador não passou.
Nem no molhe, atrás das rochas, se via o " Zé Maravilhas " por lado nenhum.
Os turistas continuavam com seus risos e brincadeiras.
Nenhum deu por falta da habitual passagem diária de Zé pescador.
Ninguém deu por falta do seu rasto deixado na areia pelos pés descalços e nus.
Já o sol tórrido estava a pique, quando no fresco e sombrio tasco a sua ausência foi notada:
- Por onde andará o tio Zé pescador?
O grupo de pescadores de meia idade, encostados ao canto do balcão, abraçados com os copos de tinto, olharam o tasqueiro.
Um deles, encolheu os ombros. Levou o copo aos lábios.
- Tem andado muito triste o ti Zé. A pescaria tem sido má...
- Faz dias que não consegue pescar nem um peixe para a janta.
- O homem já está a ficar velho, e no pequeno “ Zé Maravilhas “ não se safa.
Os comentários continuavam entre um copo e outro.
De olhos turvos e semicerrados, um dos velhos pescadores fitava o mar azul:
- A esta hora o Ti Zé já costuma ter passado por aqui para beber o tintinho.
- Pois é – retorquiu o taberneiro. – Por isso estou a estranhar.
- Se calhar desistiu de ir ao mar. – Outro pescador olhou também o infinito.
– Não tem tido sorte nenhuma.
- Deve é ter ficado na cama, ou então veio mais cedo e passou aqui antes do retiro estar aberto. Entreolharam novamente, acreditando nas suas certezas.
Quando a Tia Alice regressou a casa, de trouxa de roupa suja debaixo do braço, não estranhou a panela tapada.
Estranhou sim a rede abandonada no chão. Estranhou a cama feita.
- Deve ter-se perdido pelo retiro. – murmurou. – com toda a certeza está outra vez enfrascado com os amigos na tasca. A uma hora destas...
Tratou da faina.
Ao começar a escurecer, o Zé pescador não tinha ainda regressado.
Tia Alice franziu o sobrolho e olhou, por entre as cortinas rasgadas e imundas, através das vidraças quase opacas da pequena janela.
Estava a ficar preocupada.
Saiu.
Foi andando devagar pela rua, em direcção á tasca do retiro, espreitando a cada canto, esperando encontrar o corpo do marido, enrolado por ali, ensopado em vinho.
Mas nada...
O Ti Zé pescador não se via por lado nenhum.
Chegou á tasca.
Entrou.
Lá dentro, estava escuro e fresco.
Tia Alice deu uma olhada pela sala.
O grupo de pescadores ébrios, tinha sido substituído por uma família de estrangeiros que lambiam gelados.
- Olá Tia Alice.
- Bom dia filho. O meu Zé ?
O tasqueiro encolheu os ombros:
- Hoje não o vi, Tia Alice.
Tornou a dar a volta á sala com o olhar.
Depois saiu.
Caminhou lentamente pelo areal, que a pouco e pouco começava a esvaziar de turistas.
Atravessou toda a praia sempre de olhar perdido na linha do horizonte.
Subiu as rochas do molhe.
A corda que amarrava o “ Zé Maravilhas “, continuava presa no poste.
Mas a outra ponta jazia na areia.
O “ Zé Maravilhas “ não tinha regressado nessa manhã.
Tia Alice, no cimo da rocha, mão em pala sobre os olhos, fitava o mar, o mais longe que conseguia.
Mas o mar só lhe trazia o odor a sal e a espuma branca que se sumia no areal.
O sol desceu...
O sol pôs-se...
O céu agora escuro, envolto no bailar das ondas, continuava a trazer o cheiro a mar e a espuma que já não se destinguia.
E trouxe-lhe um soluço.
Um grito ficou-lhe cortado na garganta.
Em vez disso, só conseguiu sussurrar:
- Zé !...
De coração apertado, olhar atento, ouvido apurado, Tia Alice não conseguia sair dali
O olhar começou a ficar húmido, debaixo da escuridão da noite, uma lágrima rolou-lhe pelo rosto tisnado.
Não conseguia mover-se.
Não conseguia falar, não conseguia gritar.
Os seus lábios moviam-se lentamente, por entre as lágrimas, mas não conseguia mais que sussurrar:
- Zé...