Não sei quantos dias passaram. Quinze, vinte... não sei ao certo.
O buraco do passeio foi tapado.
Quando não havia uma lata ou uma bola de jornais amarrotados, aproveitava qualquer pedra ou outra coisa para pontapear... e marcar golo por entre as patas do banco de ferro.
Fazia sempre golo.
Os pombos aguardavam sempre os restos do meu lanche e o Tó lá estava, sentado, sorridente, com o seu casaco azul marinho.
Conversávamos um pouco e ele dava-me sempre rebuçados.
Naquele dia, Tó não tinha rebuçados.
Olhei-o desapontado.
- Não fiques triste. Vem daí. - Levantou-se do banco. Levantei-me também e acompanhei-o.
Corri para a bica a molhar os lábios, depois corri novamente para o lado dele.
Passamos a lavandaria e a mercearia. À porta do café, paramos.
Entramos.
Tó pediu um gelado. Um gelado dos grandes.
Fiquei de olhos arregalados quando mo estendeu.
Sorri-lhe. Ele também me sorriu.
Saímos do café e continuamos a andar, até chegarmos perto de casa. Ali paramos.
- É melhor ires depressa. - disse-me. - A tua mãe pode ficar preocupada.
- João !...
Era a voz da mãe, que se encontrava á porta.
Dei uma corrida. Gelado na mão, mochila ás costas...
- Onde arranjaste o gelado, querido ? - Quis saber a mãe.
- Foi o Tó que me deu.
- Quem é o Tó ?
- É aquele.
Apontei para o fundo da rua, virando-me.
Tó já lá não estava.
- Filho, já te disse que não se aceita nada de estranhos.
- Mas ele não é um estranho, mãe. Ele é meu amigo. Todos os dias me dá rebuçados, mas hoje não tinha e comprou-me um gelado.
- Não quero que aceites nada de ninguém.
Colocou-me o braço nos ombros e dirigimo-nos para casa. A mãe ainda olhou de novo para o fundo da rua.
* * *
- A mãe não quer que aceite nada de estranhos.
De braço esticado, empunhando rebuçados, Tó olhou para mim:
- Mas nós não somos estranhos, pois não ? Nós somos amigos.
Olhei-o nos olhos.
Franzi o nariz e anui com a cabeça.
- Acho que tem razão. - Aceitei os rebuçados. _ Afinal você é estranho da minha mãe, de mim não.
Tó sorriu :
- Isso mesmo. Nós somos amigos. Mas amanhã vou fazer-te uma surpresa. Amanhã não te vou trazer rebuçados, nem gelados. Vou fazer-te uma surpresa.
- O que é ? - Olhei-o com os olhos muito abertos.
- Então ? Se te contar, deixa de ser surpresa, não é ? Amanhã verás.
De coração aos pulos, levantei-me do banco.
- Vou embora. Mas estou ansioso por amanhã, pela surpresa.
Tó riu alto, enquanto me afastava a correr em direcção à bica.
* * *
Tó sentado, olhava-me enquanto esfarelava o pão para os pombos.
De seguida fui sentar-me a seu lado.
Do outro lado, no banco, um pequeno embrulho de papel colorido.
Era a surpresa.
Olhei para o embrulho.
Depois para o Tó.
De novo para o embrulho.
Mas não podia perguntar nada. Era má educação. Por isso esperei.
Por fim olhou para mim.
- Tenho aqui a surpresa, quere-la ?
Fiz que sim com a cabeça, entusiasticamente, enquanto engolia em seco, não conseguindo falar.
Agarrou no embrulho e estendeu-mo :
- Toma, é para ti.
Rasguei o papel colorido que envolvia a tão esperada surpresa.
Era um livro.
Meus olhos rejubilaram.
" Romeu e Julieta " Peça de teatro em três actos.
Olhei Tó nos olhos, que me sorria.
- Foi esta peça de teatro que representei no primeiro ano. Ainda me lembro de algumas partes.
- Gostava que voltasses a ensaia-la e que a representasses para mim.
Olhei a capa do livro. Depois para ele de novo.
- Estou tão contente. Gosto tanto desta história.
E num ímpeto levantei-me e agarrei-me ao seu pescoço, beijando-lhe o rosto.
- Vou decorar tudo, vou representar só para si.
E levantei-me a correr. Desta vez, esqueci-me da bica. Atravessei a rua, nem parei na montra do café. Corri para casa.
A mãe ouviu-me entrar e correr para o quarto, sem lhe ir dar as boas tardes à cozinha como de costume. Foi Ter comigo ao quarto.
- Que aconteceu filho ?
Eu continuava com o livro nas mãos, sentado na cama olhando a capa.
- Que livro é esse ? - Quis saber a mãe, sorrindo
- Romeu e Julieta. Mãe, foi o Tó que mo deu...
Apagou-se o sorriso no rosto da mãe.
Olhei para ela.
- Mas não faz mal mãe, pois não ? Não é de comer. Os rebuçados ou os gelados, podem Ter veneno, mas os livros não, pois não ?
Olhava-a ansioso.
O seu rosto era preocupado e pensativo.
Quem seria aquele homem ?
Que quereria com o seu filho ?
Estava a ficar cismada e receosa.
Mas não havia motivo para isso, pois não ? Tó era um verdadeiro amigo. Não fazia mal.
* * *
- Julieta, Julieta, onde estás ?
De livro aberto na mão esquerda e de braço direito em riste, ia declamando pelo corredor.
A mãe estava ao telefone:
- Mariana. Olá é Alice. Tudo bem obrigada. O Jorge está bom ? E o Carlos ? Óptimo. Desculpa estar a ligar... - A mãe começou a falar baixo e olhava para mim enquanto eu ia ensaiando. - mas estou com uma cisma. Estou preocupada com o João. Diz-me uma coisa: O Jorge é o melhor amigo do meu João. Ele tem comentado alguma coisa sobre um homem que se encontra com o meu filho ? Nunca viu ninguém ? Não sei quem é, só sei que esse homem oferece rebuçados e gelados ao miúdo. Agora ofereceu-lhe um livro. Estou com medo Mariana. Sabes bem que há casos de homens que desencaminham crianças e depois abusam sexualmente delas. Eu estou com medo. Até já pensei ir á policia. Não sabes de nada ? Eras capaz ? Fazes isso por mim ? - Sorriu agradecida. - Agradeço-te do fundo do coração.
Desligou.
Começou a roer a unha, andando devagar na minha direcção.
Deixei de declamar.
Que teria acontecido ?
Será que me ia ralhar ? Ou bater ? Que será que eu tinha feito ?
Mas a mãe não me disse nada.
Nem olhou para mim.
Só continuou a andar, lentamente, pensativa, a roer a unha.
quarta-feira, 1 de setembro de 2010
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