quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Azul Marinho ( parte 3 )

- Já ensaiei a peça quase toda.
Eu estava entusiasmadissimo naquela tarde, sentado no banco do jardim, ao lado do Tó.
Este sorria.
- Muito bem. Quer dizer que estás quase pronto para a representares para mim, não é ?
- Sim, claro. Daqui a uns dias já a posso representar. Tó ajeitou o casaco azul:
- Vou arranjar um sitio sossegado, onde possamos ficar só nós dois, e depois representas para mim, está bem ? - Claro que sim. Estou tão contente.
Levantei-me e despedi-me.
- Adeus, até amanhã.
Desta vez, não me esqueci da bica.
Quando cheguei a casa, fui dar um beijo à mãe, e corri para o quarto para continuar o ensaio.
Tocou o telefone.
A mãe atendeu.
- Estou ? Mariana ? Então ? Tens alguma coisa para me dizer ? - Ficou quieta, muda, durante um pouco. _ Seguiste-o até ao jardim ? Viste-o sentado no banco a dar de comer aos pombos, e que mais ? Sim ? Estou com tanto medo. Agradeço muito. Se calhar o melhor é ir falar com a policia. Obrigada. Até amanhã.

* * *
- Chegou o dia. Amanhã vais representar para mim. Aluguei um quartinho aqui perto. Vai ser um espectáculo.
Tó estava extasiado, com o seu cabelo doirado ao sol e o casaco de fazenda azul marinho.
Eu também estava desejoso que chegasse esse dia.
- Estou pronto. Para a semana começam as férias grandes da escola, se calhar já não nos podemos encontrar tão facilmente. Mas amanhã, vai ser o grande dia. - Olhei para ele, sentindo o meu sorriso desaparecer nos lábios. - Promete que não vai faltar ? O meu pai faltou, da outra vez. - Não. - Tó acariciou-me a cabeça de ouro. - Não faltarei por nada deste mundo. Está tudo assente. Nada irá falhar.
Não irá falhar.
E ele vai estar presente.
Vai ver-me actuar.
Os olhos e os lábios abriram-se em largo sorriso.


* * *


No inicio do jardim, estava um policia.
Estranho.
Nunca tinha visto um policia no jardim !...
O Tó lá estava, sentado com o seu casaco azul marinho, sorrindo enquanto me aguardava.
Dirigi-me a ele com um largo sorriso.
Chegara o grande dia.
Quando cheguei perto dele, levantou-se :
- Vamos lá ?
Segui-o.
Não parei na bica.
Andamos lado a lado, durante três quarteirões, ao fundo do jardim.
Tó indicou-me uma porta.
Entramos.
Subimos até ao segundo andar.
Abriu-se uma porta.
Um quarto, duas cadeiras, uma cama...
Fechou-se a porta.

* * *


- Não sei o que se passa... - O policia estava nervoso. - vi-o entrar no jardim, e de repente já não o vi mais. Corri tudo, pedi reforços, batemos toda a área.
Alice parecia louca.
Mãos na cabeça, desgrenhando o cabelo:
- Não acredito. Vão vigiar uma criança e perdem-lhe o rasto. Meu Deus. Que estará a acontecer ? - Consultou o relógio. - A esta hora João já devia estar em casa. Meu Deus. As lágrimas corriam-lhe pelo rosto.
Alice andava de traz para a frente, no hall de entrada, de traz para a frente, chorando, desgrenhando os cabelos.
- Vou ficar louca.
Os dois policias permaneciam à porta, calados, sem saberem que fazer ou que dizer.
- Dão-me licença ?
Ouviu-se uma voz feminina do lado de fora da porta.
Alguém entrou.
Alice olhou :
- Mariana !... - Agarrou-se-lhe ao pescoço, não conseguindo calar os soluços, chorando copiosamente.


* * *


A noite aproximava-se rapidamente.
No quarto alugado, a peça estava a terminar.
Tó, de olhos rasos de água, bebia cada palavra que eu declamava.
Quando por fim terminei, Tó colocou as mãos no rosto e chorou. Também tive vontade de chorar. Mas em vez disso, abracei-o com força. O meu corpo de encontro o casaco de fazenda azul marinho.
Ele também me abraçou com força, não parando de chorar.
Estivemos um bocado, ali, assim, calados, abraçados...
Por fim Tó sorveu as lágrimas e afastou-me limpando os olhos:
- Obrigado ! Obrigado, meu filho. Foste um verdadeiro actor. Adorei a tua prestação. Parabéns.
Sorri.
Também me apetecia chorar.
Meus olhos ficaram rasos de água.
Mas eu não podia chorar. Eu era o homem da casa...
Enxuguei as lágrimas.
Tó levou a mão ao peito e retirou o seu fio do pescoço:
- Quero que fiques com uma recordação minha. Este fio é para ti.
Era um fio em ouro, com um crucifixo também em ouro.
O Cristo, no crucifixo tinha um dos braços soldados. Era um pequeno defeito.
Mas para mim, era a coisa mais perfeita. Era lindo.
Agarrei na oferta que me fizera.
Coloquei-o no meu pescoço.
Olhei Tó.
Ele, com olhar paternal, tornou a abraçar-me e beijou-me nas duas faces. Depois na testa:
- Gosto muito de ti. Mas agora vai, vai.
Virou-se para o outro lado, para não me ver sair, sem dizer palavra.
Desci a escada e atravessei a rua.
Estava escuro. A mãe já devia estar preocupada
Corri para casa.
Havia dois policias à porta
Que teria acontecido ?
Furei por entre os oficiais.
Entrei a corre.
- Mãe. Mãe.
- João ? - A mãe correu para mim, abraçando-me com força. - Que te fizeram, meu filho ? - Colocou as mãos nos meus ombros e mirou-me dos pés á cabeça. - Que te fizeram ? Onde estiveste ?
- Que é isso mãe ? Ninguém me fez nada. Só fui representar a peça de teatro. Mais nada.
Um dos policias aproximou-se:
- Se quiser, podemos levar o miúdo para ser inspeccionado e ...
- Não obrigada. - Cortou a mãe olhando para ele. - O meu filho já aqui está. Agradeço, mas já não preciso mais de vós. Agradeço que se retirem.
Os policias entreolharam-se.
- Bom, nesse caso...
Viraram as costas e saíram, fechando a porta atras deles.
- Filho, estava tão preocupada. - A mãe começou a chorar.
- Mas eu não fiz nada de mal, mãe. Só fui representar a peça de teatro para o meu amigo Tó.
A mãe ficou sem respiração. Tornou a olhar-me de frente.
De novo o Tó ...
De novo aquele homem...
Quem seria aquele homem ?


* * *


Nunca mais vi o Tó.
Uma semana depois, começaram as férias grandes. Passei para a escola preparatória. Tive muitos elogios. A mãe ficara muito satisfeita comigo.
Um dia entrei no quarto da mãe. Esta arrumava o armário do pai.
Estranhei, porque raramente a mãe ali mexia; e agora, havia roupa do pai espalhada pela cama e várias caixas no chão.
- Mãe ?
- Sim. - Nem olhou para mim.
- Porque é que nunca me fala do pai ?
Olhou-me então:
- Que queres saber, meu amor ?
- Como era o pai, essas coisas.
A mãe sorriu. Abriu uma caixa.
Agarrou numa mão cheia de fotografias.
- Este é o pai. - Olhava-as carinhosamente. - Aqui está o teu pai, António José.
Passou as fotos para as minhas mãos.
Ali estava ele...
Cabelo de ouro...
Olhos claros...
Pele limpa, sem barba nem bigode...
Não teria mais de quarenta anos...
Só lhe faltava o casaco azul marinho.
- Mas é o Tó, mãe !...
- O quê filho ?
Olhei a mãe nos olhos:
- Este é o Tó, o meu amigo.
- Filho, esse Tó não existe. Não vês...
- Existe sim mãe. Foi ele que me deu isto.
Levei a mão ao pescoço e tirei o fio de ouro que ele me tinha dado.
A mãe ficou atónita de boca aberta:
- Onde arranjaste isso ?
- Foi o Tó que mo deu.
- Filho, este é o fio de ouro do teu pai. Aqui está, o braço do Cristo, defeituoso. Onde o encontraste ?
- Já lhe disse mãe...
- Este fio desapareceu logo após a morte do teu pai. Nunca mais o encontrei...
- Foi o Tó que mo deu.
- Mas quem é esse Tó ? Que queria ele ?
- Ele só queria ser meu amigo e assistir à peça de teatro " Romeu e Julieta ".
A mãe ficou de novo calada.
Fora precisamente na noite da estreia da peça " Romeu e Julieta ", em que João representava o protagonista, que se dera o acidente. António morrera com o desgosto de não ver o filho representar.
Alice entregou o fio a João.
Não sabia que pensar.
Levantou-se lentamente e virou-se para cima da cama para continuar as arrumações, pensativa...
Agarrou numa cruzeta e pendurou nela o casaco preferido de António José: O casaco de fazenda azul marinho!...

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