terça-feira, 18 de setembro de 2012

Senhora da Luz - ( parte 1 )

CAPITULO I 
     O mar está alto.  
     As vagas espumam ao colidirem com as rochas.
     O céu anilado desencobre, de quando em quando, o sol matinal, que rejubila e queima.
     E as ondas rolam na praia dourada, de areia fina e limpa.
     A brisa da manhã, fresca, emana já o cheiro do óleo de coco dos corpos estirados dos veraneantes.     
     O areal vai enchendo, a pouco e pouco, de toalhas coloridas e sombrinhas, quais cogumelos multicor semeados ao acaso. 
      Os pés nus do Zé pescador, calcam a areia molhada, sem pressa. 
     Vem só, cabisbaixo, puxando a rede vazia.
     Os ombros murchos tisnados pelo sol, vergam pelo peso de anos e anos de faina no mar. Mas desta vez está só, nem de peixe vem acompanhado. 
     E continua a caminhar, deixando para traz o rasto do desânimo de uma pescaria infrutífera. E logo a espuma apaga o rasto deixado, levando com ela a tristeza, deixada ao esquecimento. Passa invisível. Passa só, pelo meio de centenas.
     E continua a caminhada de corpo vergado de angustia. Sobe os degraus de pedra, ao canto da praia e atravessa a rua sem olhar, direito à tasca do retiro. Ali, pede um copo de tinto. Sem tirar os olhos do balcão, emborca-o de um só trago. Torna a encher, torna a beber.
     - Então Ti Zé pescador, a faina foi má ? - Quis saber o taberneiro.
     Anuiu com a cabeça ainda sem levantar o olhar.
     - Amanhã o dia será melhor... - tornou o tasqueiro.
     Bebeu mais um copo. Tirou duas moedas do bolso e saiu para a rua.
     A tasca encheu-se repentinamente com um bando de turistas barulhentos e alegres.
     A rua estreita de calçada fazia-o tropeçar de quando em vez. Com o corpo cansado e os olhos turvos, o vinho fazia-o embicar em qualquer paralelo mais saliente; e assim foi cambaleando até à porta azul da sua casa branca e baixa.
     Tia Alice, já tinha saído para a vila, com uma trouxa de roupa lavada, para entregar. Mas não se esqueceu de deixar na mesa, o prato e a panela tapada, com a sopa para o marido. Este nem olhou. Largou a rede no chão e foi directo para o quarto.
     Mal caiu na cama, adormeceu profundamente.


                                                                        * * *


     O sol levantou até ao alto.
     A praia ficou apinhada.
     Depois o sol tornou a baixar, lentamente, e quando começou a deitar-se sobre o azul do oceano, a praia já estava vazia. 
     Vazia ! 
     Não havia ninguém. 
    Só o Zé pescador voltava ao mar. Carregando a rede ao ombro, até para lá dos rochedos, onde se encontrava o pequeno bote, o " Zé Maravilhas ". 
     Meteu-se nele e remou firmemente, em direcção ao sol posto, afastando-se da costa.
     Ninguém mais viu o Zé pescador!... 

     O sol tornou a levantar-se. 
     O mar continuou a espumar na areia. 
     A praia começou a encher. 
     No ar, o odor de óleo de coco. 
     Os cogumelos começaram a abrir no meio do areal. 
     Mas, junto ao mar, na areia molhada, não havia nada. 
     Não havia marcas dos pés descalços do pescador. 
     As vagas não arrastavam a angustia e a tristeza de outra pescaria falhada.
     O Zé pescador não passou. Nem no molhe, atrás das rochas, se via o " Zé Maravilhas " por lado nenhum. 
     Os turistas continuavam com seus risos e brincadeiras. 
     Nenhum deu por falta da habitual passagem diária de Zé pescador. 
     Ninguém deu por falta do seu rasto deixado na areia pelos pés descalços e nus. 
     Já o sol tórrido estava a pique, quando no fresco e sombrio tasco a sua ausência foi notada:
     - Por onde andará o tio Zé pescador? 
    O grupo de pescadores de meia idade, encostados ao canto do balcão, abraçados com os copos de tinto, olharam o tasqueiro. 
    Um deles, encolheu os ombros. Levou o copo aos lábios.
     - Tem andado muito triste o ti Zé. A pescaria tem sido má... 
     - Faz dias que não consegue pescar nem um peixe para a janta.
     - O homem já está a ficar velho, e no pequeno “ Zé Maravilhas “ não se safa. 
     Os comentários continuavam entre um copo e outro. 
     De olhos turvos e semicerrados, um dos velhos pescadores fitava o mar azul: 
     - A esta hora o Ti Zé já costuma ter passado por aqui para beber o tintinho. 
     - Pois é – retorquiu o taberneiro. – Por isso estou a estranhar. 
     - Se calhar desistiu de ir ao mar. – Outro pescador olhou também o infinito. 
     – Não tem tido sorte nenhuma. 
     - Deve é ter ficado na cama, ou então veio mais cedo e passou aqui antes do retiro estar aberto.              Entreolharam novamente, acreditando nas suas certezas. 
     Quando a Tia Alice regressou a casa, de trouxa de roupa suja debaixo do braço, não estranhou a panela tapada. 
     Estranhou sim a rede abandonada no chão. Estranhou a cama feita. 
     - Deve ter-se perdido pelo retiro. – murmurou. – com toda a certeza está outra vez enfrascado com os amigos na tasca. A uma hora destas... 
     Tratou da faina. 
     Ao começar a escurecer, o Zé pescador não tinha ainda regressado. 
     Tia Alice franziu o sobrolho e olhou, por entre as cortinas rasgadas e imundas, através das vidraças quase opacas da pequena janela. 
     Estava a ficar preocupada. 
     Saiu. 
     Foi andando devagar pela rua, em direcção á tasca do retiro, espreitando a cada canto, esperando encontrar o corpo do marido, enrolado por ali, ensopado em vinho.
     Mas nada... O Ti Zé pescador não se via por lado nenhum. 
     Chegou á tasca. Entrou. Lá dentro, estava escuro e fresco. 
     Tia Alice deu uma olhada pela sala.
     O grupo de pescadores ébrios, tinha sido substituído por uma família de estrangeiros que lambiam gelados. 
     - Olá Tia Alice. 
     - Bom dia filho. O meu Zé ? 
     O tasqueiro encolheu os ombros: - Hoje não o vi, Tia Alice.
     Tornou a dar a volta á sala com o olhar.
     Depois saiu. 
     Caminhou lentamente pelo areal, que a pouco e pouco começava a esvaziar de turistas. 
     Atravessou toda a praia sempre de olhar perdido na linha do horizonte. 
     Subiu as rochas do molhe. 
     A corda que amarrava o “ Zé Maravilhas “, continuava presa no poste. 
     Mas a outra ponta jazia na areia. O “ Zé Maravilhas “ não tinha regressado nessa manhã. 
     Tia Alice, no cimo da rocha, mão em pala sobre os olhos, fitava o mar, o mais longe que conseguia.        Mas o mar só lhe trazia o odor a sal e a espuma branca que se sumia no areal. 
     O sol desceu... 
     O sol pôs-se... 
     O céu agora escuro, envolto no bailar das ondas, continuava a trazer o cheiro a mar e a espuma que já não se destinguia. 
     E trouxe-lhe um soluço. 
     Um grito ficou-lhe cortado na garganta. 
     Em vez disso, só conseguiu sussurrar: - Zé !... 
     De coração apertado, olhar atento, ouvido apurado, Tia Alice não conseguia sair dali 
     O olhar começou a ficar húmido, debaixo da escuridão da noite, uma lágrima rolou-lhe pelo rosto tisnado. 
     Não conseguia mover-se. 
     Não conseguia falar, não conseguia gritar. 
     Os seus lábios moviam-se lentamente, por entre as lágrimas, mas não conseguia mais que sussurrar:        - Zé...

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Azul Marinho ( parte 1 )

Saltei do muro para o chão.
Foi fácil.
Apanhei um pau e comecei a bater nas folhas mais baixas das árvores. Numa correria louca, saltitando, de mochila ás costas.
Acabou o passeio.
Tenho que atravessar a rua. Olhei á direita, depois á esquerda, novamente á direita. A mãe recomendou-me que tivesse muito cuidado a atravessar as ruas. Mas eu tenho cuidado, sempre tive. Afinal, já sou um homenzinho. A tia Lina está sempre a dizer-me : " João, agora já tens dez anos, já és um homenzinho. " A mãe também me diz muitas vezes que eu sou o homem da casa. Se o pai não tivesse morrido, se calhar ainda era só um menino, mas assim, já sou o homem da casa e já vou sozinho de casa para a escola e da escola para casa.
O caminho parece estar livre. Não se vê nenhum carro.
Dei uma corrida e atravessei a rua.
Do outro lado, no passeio, há uma lata vazia de refrigerante.
Dou-lhe um chuto, depois outro e remato certeiro por entre as patas de um banco de ferro.
Golo !...
Perto do jardim, os pombos bicam no chão à procura de alimento. Coloco a mão no bolso à procura de um pedaço de pão, sobra do lanche, guardado para o efeito. Esfarelo-o entre as mãos e solto as migalhas pelo chão.
Uma nuvem de pombos, baixa em voo coordenado sobre a minha cabeça, para logo pousar no chão.
Fico a vê-los comer as minhas migalhas de pão, satisfeito.
Num banco de jardim, um homem de casaco de fazenda azul marinho olha-me sorrindo.
Ando mais um pouco pelo jardim e vou até á bica molhar os lábios, não que tenha sede, o calor ainda não aperta! Mal começou a primavera, com os seus fracos raios de sol, ainda sem calor.
Mais duas ruas e estou em casa, Passo pela lavandaria do senhor Chinês, a mercearia e o café. Aí paro um pouco na montra, para ver os frascos de rebuçados e chupa-chupas que lá estão, nas prateleiras de vidro.
De vez em quando, a dona Paula, do café, vem cá fora e dá-me um rebuçado. Colo o nariz no vidro e espreito lá para dentro.
Para minha desilusão, não é a dona Paula que lá está hoje. Talvez amanhã!...
- Queres um rebuçado ?
Olhei para cima. O homem do casaco de fazenda azul marinho olhava-me sorridente.
- Não obrigado. A mãe diz que não se devem aceitar coisas de estranhos.
Rodei nos calcanhares e segui o meu caminho. Passei o banco e a sala de cinema.
Olhei para traz, para o fundo da rua para confirmar se se aproximava algum carro. Tinha que atravessar. O homem do casaco azul, continuava parado à montra do café, olhando-me.
Empurrei a porta com força:
- Mãe ! Cheguei.
Dirigi-me à cozinha. A mãe tirava um tabuleiro de bolinhos do forno, colocando-o sobre a bancada.
- Como correu a escola hoje, meu querido ?
- Muito bem. O Francisco não sabia fazer uma subtracção e eu ajudei-o.
A mãe sorriu. Beijou-me a cabeça loura :
- És muito inteligente. Assim é que é, devemos sempre ajudar quem precisa.
Larguei a mochila no chão e fui direito ao tabuleiro dos bolinhos.
- Cuidado que estão muito quentes.
Claro que estavam quentes. Tinham acabado de sair do forno. A mãe pensaria que eu sou algum tolinho ?
Mas os olhos não despregavam dos bolinhos fumegantes.
- Vai para o teu quarto fazer os trabalhos da escola, e quando terminares, já podes vir provar os bolinhos, está bem ?
Olhei a mãe. Sorri-lhe.
- Claro que sim, mãe. Hoje tenho poucas coisas, só uma redacção e um desenho.
- Então vai lá, filho.



* * *
Uma hora mais tarde, voltei à cozinha:
- Mãe, já posso provar os bolinhos ?
A mãe preparava agora o jantar.
- Já fizeste os trabalhos ?
Entreguei duas folhas à mãe e tirei um bolinho do tabuleiro, sentando-me numa cadeira.
A mãe limpou as mãos e olhou as folhas.
O desenho consistia em três figuras; uma pequena e duas grandes. Uma com vestido cor de rosa e outra com pernas muito compridas, de negro, mas sem rosto.
- Quem são ? - Inquiriu a mãe.
- Somos nós !...
O pequeno e o de vestido cor de rosa...
- E este comprido, quem é ?
- É o pai.
Ela olhou-me. Eu continuava a mastigar os bolinhos.
De olhar triste, a mãe leu de seguida a redacção, em vos baixa.
" Um dia fui ao parque. Havia muito sol e os pombos comiam migalhas. Estava lá o Jorge, com o pai que é policia. O Zé também lá estava; o pai foi lá buscá-lo mais tarde. Eu fui sozinho. Brinquei muito com eles. Quando se fez tarde, o Zé foi embora com o pai, que o foi buscar. O Jorge também foi com o pai dele. Eu fiquei sozinho. Um senhor de casaco azul deu-me um rebuçado e depois fui embora, sozinho. Mas eu não tenho medo. Já sou o homem da casa. "
De olhar raso de lágrimas, largou as folhas e continuou a fazer o jantar.


* * *


Dei um chuto numa pedra.
Que era aquilo no meio do passeio ?
Curioso, espreitei.
Os homens da água tinham aberto um buraco no chão, para arranjarem os canos.
Fenomenal.
Havia uma vala com quase um metro de largo.
Agora tinha de saltar sobre ele.
Dei três passos para traz.
Depois, corri com muita velocidade, e pulei.
Parei do outro lado.
Tinha conseguido.
Tinha ultrapassado a vala.
Fenomenal.
Continuei pelo passeio, até ao jardim. Uma bola de jornais amarrotados estava ali, mesmo á minha frente.
Dei-lhe um pontapé e mais outro. A baliza ali estava à espera. Chutei com força. Mais um golo por entre as patas do banco de ferro.
Tirei o pão para os pombos. Esfarelei-o para o chão e sentei-me no banco. Os pombos bicavam no chão.
Alguém se sentou a meu lado, mas eu não liguei.
- Os pombos hoje estão com muito apetite.
Olhei para o lado. Era o homem do casaco de fazenda azul marinho. Fitava os pombos.
Tornei a olhar para eles.
- Eles já estão habituados a que eu lhes dê o lanche. Todos os dias lhes dou o resto do meu pão.
- Bem sei. Tenho-te visto fazê-lo. És o João, não és ? Olhei de novo para o homem.
Este agora olhava para mim.
- Sou. Como sabe ?
- Tenho ouvido o teu nome por aí. Penso que foi um pombo que mo disse. - Sorriu.
Sorri também.
- Eu sou o Tó. - O homem estendeu-me a mão. - Muito prazer.
Estendi-lhe também a mão.
Era muito simpático.
Não teria mais de quarenta anos, cabelo aloirado e olhos claros. A cara limpa, sem barba nem bigode. Camisa branca e calça preta. E, claro está, casaco azul marinho.
- Gostavas de ser meu amigo ? - Perguntou-me.
Encolhi os ombros. Na verdade tinha poucos amigos. Mas todos eles muito mais novos que o Tó.
Tó meteu a mão no bolso do casaco e tirou dois rebuçados.
Estendeu-mos.
Olhei-o nos olhos.
- Já não sou um estranho, pois não ?
- penso que não.
- Claro que não, agora somos amigos, não é ?
Agarrei nos rebuçados e desembrulhei um, que coloquei na boca.
- A tua mãe ensina-te muitas coisas, não é verdade ? Alice, a tua mãe, não é ?
- É. Ela é maravilhosa, ensina-me muitas coisas. E eu sou o homem da casa.
Tó sorriu . - Um homem muito valente, não ?
Anui, sorrindo.
- E o teu pai ? - Quis saber Tó.
- O meu pai morreu.
- Tens saudades dele ?
Olhei para os pombos.
- Ás vezes!... outras vezes não quero pensar nele. Ele morreu e não foi ver a peça de teatro da escola em que eu participava no primeiro ano. Todos os outros meninos tinham os pais a assistir. Só eu não. O meu pai morreu e a minha mãe também não foi. Acho que teve de o ficar a guardar ou qualquer coisa !...
- Ficas triste por já não teres pai ? - Tó tinha os olhos húmidos, brilhantes.
- Ás vezes !... Mas eu sou forte. Sou o homem da casa.
Olhei em volta.
Os pombos já tinham voado. Pus-me de pé num pulo.
- Está a ficar tarde. Tenho de ir embora. A mãe está á minha espera. - Sorri para o meu novo amigo. - Adeus, até amanhã.
Corri a toda a velocidade, atravessando o jardim, direito á bica, onde fui molhar os lábios.

Azul Marinho ( parte 2 )

Não sei quantos dias passaram. Quinze, vinte... não sei ao certo.
O buraco do passeio foi tapado.
Quando não havia uma lata ou uma bola de jornais amarrotados, aproveitava qualquer pedra ou outra coisa para pontapear... e marcar golo por entre as patas do banco de ferro.
Fazia sempre golo.
Os pombos aguardavam sempre os restos do meu lanche e o Tó lá estava, sentado, sorridente, com o seu casaco azul marinho.
Conversávamos um pouco e ele dava-me sempre rebuçados.
Naquele dia, Tó não tinha rebuçados.
Olhei-o desapontado.
- Não fiques triste. Vem daí. - Levantou-se do banco. Levantei-me também e acompanhei-o.
Corri para a bica a molhar os lábios, depois corri novamente para o lado dele.
Passamos a lavandaria e a mercearia. À porta do café, paramos.
Entramos.
Tó pediu um gelado. Um gelado dos grandes.
Fiquei de olhos arregalados quando mo estendeu.
Sorri-lhe. Ele também me sorriu.
Saímos do café e continuamos a andar, até chegarmos perto de casa. Ali paramos.
- É melhor ires depressa. - disse-me. - A tua mãe pode ficar preocupada.
- João !...
Era a voz da mãe, que se encontrava á porta.
Dei uma corrida. Gelado na mão, mochila ás costas...
- Onde arranjaste o gelado, querido ? - Quis saber a mãe.
- Foi o Tó que me deu.
- Quem é o Tó ?
- É aquele.
Apontei para o fundo da rua, virando-me.
Tó já lá não estava.
- Filho, já te disse que não se aceita nada de estranhos.
- Mas ele não é um estranho, mãe. Ele é meu amigo. Todos os dias me dá rebuçados, mas hoje não tinha e comprou-me um gelado.
- Não quero que aceites nada de ninguém.
Colocou-me o braço nos ombros e dirigimo-nos para casa. A mãe ainda olhou de novo para o fundo da rua.


* * *


- A mãe não quer que aceite nada de estranhos.
De braço esticado, empunhando rebuçados, Tó olhou para mim:
- Mas nós não somos estranhos, pois não ? Nós somos amigos.
Olhei-o nos olhos.
Franzi o nariz e anui com a cabeça.
- Acho que tem razão. - Aceitei os rebuçados. _ Afinal você é estranho da minha mãe, de mim não.
Tó sorriu :
- Isso mesmo. Nós somos amigos. Mas amanhã vou fazer-te uma surpresa. Amanhã não te vou trazer rebuçados, nem gelados. Vou fazer-te uma surpresa.
- O que é ? - Olhei-o com os olhos muito abertos.
- Então ? Se te contar, deixa de ser surpresa, não é ? Amanhã verás.
De coração aos pulos, levantei-me do banco.
- Vou embora. Mas estou ansioso por amanhã, pela surpresa.
Tó riu alto, enquanto me afastava a correr em direcção à bica.

* * *


Tó sentado, olhava-me enquanto esfarelava o pão para os pombos.
De seguida fui sentar-me a seu lado.
Do outro lado, no banco, um pequeno embrulho de papel colorido.
Era a surpresa.
Olhei para o embrulho.
Depois para o Tó.
De novo para o embrulho.
Mas não podia perguntar nada. Era má educação. Por isso esperei.
Por fim olhou para mim.
- Tenho aqui a surpresa, quere-la ?
Fiz que sim com a cabeça, entusiasticamente, enquanto engolia em seco, não conseguindo falar.
Agarrou no embrulho e estendeu-mo :
- Toma, é para ti.
Rasguei o papel colorido que envolvia a tão esperada surpresa.
Era um livro.
Meus olhos rejubilaram.
" Romeu e Julieta " Peça de teatro em três actos.
Olhei Tó nos olhos, que me sorria.
- Foi esta peça de teatro que representei no primeiro ano. Ainda me lembro de algumas partes.
- Gostava que voltasses a ensaia-la e que a representasses para mim.
Olhei a capa do livro. Depois para ele de novo.
- Estou tão contente. Gosto tanto desta história.
E num ímpeto levantei-me e agarrei-me ao seu pescoço, beijando-lhe o rosto.
- Vou decorar tudo, vou representar só para si.
E levantei-me a correr. Desta vez, esqueci-me da bica. Atravessei a rua, nem parei na montra do café. Corri para casa.
A mãe ouviu-me entrar e correr para o quarto, sem lhe ir dar as boas tardes à cozinha como de costume. Foi Ter comigo ao quarto.
- Que aconteceu filho ?
Eu continuava com o livro nas mãos, sentado na cama olhando a capa.
- Que livro é esse ? - Quis saber a mãe, sorrindo
- Romeu e Julieta. Mãe, foi o Tó que mo deu...
Apagou-se o sorriso no rosto da mãe.
Olhei para ela.
- Mas não faz mal mãe, pois não ? Não é de comer. Os rebuçados ou os gelados, podem Ter veneno, mas os livros não, pois não ?
Olhava-a ansioso.
O seu rosto era preocupado e pensativo.
Quem seria aquele homem ?
Que quereria com o seu filho ?
Estava a ficar cismada e receosa.
Mas não havia motivo para isso, pois não ? Tó era um verdadeiro amigo. Não fazia mal.


* * *


- Julieta, Julieta, onde estás ?
De livro aberto na mão esquerda e de braço direito em riste, ia declamando pelo corredor.
A mãe estava ao telefone:
- Mariana. Olá é Alice. Tudo bem obrigada. O Jorge está bom ? E o Carlos ? Óptimo. Desculpa estar a ligar... - A mãe começou a falar baixo e olhava para mim enquanto eu ia ensaiando. - mas estou com uma cisma. Estou preocupada com o João. Diz-me uma coisa: O Jorge é o melhor amigo do meu João. Ele tem comentado alguma coisa sobre um homem que se encontra com o meu filho ? Nunca viu ninguém ? Não sei quem é, só sei que esse homem oferece rebuçados e gelados ao miúdo. Agora ofereceu-lhe um livro. Estou com medo Mariana. Sabes bem que há casos de homens que desencaminham crianças e depois abusam sexualmente delas. Eu estou com medo. Até já pensei ir á policia. Não sabes de nada ? Eras capaz ? Fazes isso por mim ? - Sorriu agradecida. - Agradeço-te do fundo do coração.
Desligou.
Começou a roer a unha, andando devagar na minha direcção.
Deixei de declamar.
Que teria acontecido ?
Será que me ia ralhar ? Ou bater ? Que será que eu tinha feito ?
Mas a mãe não me disse nada.
Nem olhou para mim.
Só continuou a andar, lentamente, pensativa, a roer a unha.

Azul Marinho ( parte 3 )

- Já ensaiei a peça quase toda.
Eu estava entusiasmadissimo naquela tarde, sentado no banco do jardim, ao lado do Tó.
Este sorria.
- Muito bem. Quer dizer que estás quase pronto para a representares para mim, não é ?
- Sim, claro. Daqui a uns dias já a posso representar. Tó ajeitou o casaco azul:
- Vou arranjar um sitio sossegado, onde possamos ficar só nós dois, e depois representas para mim, está bem ? - Claro que sim. Estou tão contente.
Levantei-me e despedi-me.
- Adeus, até amanhã.
Desta vez, não me esqueci da bica.
Quando cheguei a casa, fui dar um beijo à mãe, e corri para o quarto para continuar o ensaio.
Tocou o telefone.
A mãe atendeu.
- Estou ? Mariana ? Então ? Tens alguma coisa para me dizer ? - Ficou quieta, muda, durante um pouco. _ Seguiste-o até ao jardim ? Viste-o sentado no banco a dar de comer aos pombos, e que mais ? Sim ? Estou com tanto medo. Agradeço muito. Se calhar o melhor é ir falar com a policia. Obrigada. Até amanhã.

* * *
- Chegou o dia. Amanhã vais representar para mim. Aluguei um quartinho aqui perto. Vai ser um espectáculo.
Tó estava extasiado, com o seu cabelo doirado ao sol e o casaco de fazenda azul marinho.
Eu também estava desejoso que chegasse esse dia.
- Estou pronto. Para a semana começam as férias grandes da escola, se calhar já não nos podemos encontrar tão facilmente. Mas amanhã, vai ser o grande dia. - Olhei para ele, sentindo o meu sorriso desaparecer nos lábios. - Promete que não vai faltar ? O meu pai faltou, da outra vez. - Não. - Tó acariciou-me a cabeça de ouro. - Não faltarei por nada deste mundo. Está tudo assente. Nada irá falhar.
Não irá falhar.
E ele vai estar presente.
Vai ver-me actuar.
Os olhos e os lábios abriram-se em largo sorriso.


* * *


No inicio do jardim, estava um policia.
Estranho.
Nunca tinha visto um policia no jardim !...
O Tó lá estava, sentado com o seu casaco azul marinho, sorrindo enquanto me aguardava.
Dirigi-me a ele com um largo sorriso.
Chegara o grande dia.
Quando cheguei perto dele, levantou-se :
- Vamos lá ?
Segui-o.
Não parei na bica.
Andamos lado a lado, durante três quarteirões, ao fundo do jardim.
Tó indicou-me uma porta.
Entramos.
Subimos até ao segundo andar.
Abriu-se uma porta.
Um quarto, duas cadeiras, uma cama...
Fechou-se a porta.

* * *


- Não sei o que se passa... - O policia estava nervoso. - vi-o entrar no jardim, e de repente já não o vi mais. Corri tudo, pedi reforços, batemos toda a área.
Alice parecia louca.
Mãos na cabeça, desgrenhando o cabelo:
- Não acredito. Vão vigiar uma criança e perdem-lhe o rasto. Meu Deus. Que estará a acontecer ? - Consultou o relógio. - A esta hora João já devia estar em casa. Meu Deus. As lágrimas corriam-lhe pelo rosto.
Alice andava de traz para a frente, no hall de entrada, de traz para a frente, chorando, desgrenhando os cabelos.
- Vou ficar louca.
Os dois policias permaneciam à porta, calados, sem saberem que fazer ou que dizer.
- Dão-me licença ?
Ouviu-se uma voz feminina do lado de fora da porta.
Alguém entrou.
Alice olhou :
- Mariana !... - Agarrou-se-lhe ao pescoço, não conseguindo calar os soluços, chorando copiosamente.


* * *


A noite aproximava-se rapidamente.
No quarto alugado, a peça estava a terminar.
Tó, de olhos rasos de água, bebia cada palavra que eu declamava.
Quando por fim terminei, Tó colocou as mãos no rosto e chorou. Também tive vontade de chorar. Mas em vez disso, abracei-o com força. O meu corpo de encontro o casaco de fazenda azul marinho.
Ele também me abraçou com força, não parando de chorar.
Estivemos um bocado, ali, assim, calados, abraçados...
Por fim Tó sorveu as lágrimas e afastou-me limpando os olhos:
- Obrigado ! Obrigado, meu filho. Foste um verdadeiro actor. Adorei a tua prestação. Parabéns.
Sorri.
Também me apetecia chorar.
Meus olhos ficaram rasos de água.
Mas eu não podia chorar. Eu era o homem da casa...
Enxuguei as lágrimas.
Tó levou a mão ao peito e retirou o seu fio do pescoço:
- Quero que fiques com uma recordação minha. Este fio é para ti.
Era um fio em ouro, com um crucifixo também em ouro.
O Cristo, no crucifixo tinha um dos braços soldados. Era um pequeno defeito.
Mas para mim, era a coisa mais perfeita. Era lindo.
Agarrei na oferta que me fizera.
Coloquei-o no meu pescoço.
Olhei Tó.
Ele, com olhar paternal, tornou a abraçar-me e beijou-me nas duas faces. Depois na testa:
- Gosto muito de ti. Mas agora vai, vai.
Virou-se para o outro lado, para não me ver sair, sem dizer palavra.
Desci a escada e atravessei a rua.
Estava escuro. A mãe já devia estar preocupada
Corri para casa.
Havia dois policias à porta
Que teria acontecido ?
Furei por entre os oficiais.
Entrei a corre.
- Mãe. Mãe.
- João ? - A mãe correu para mim, abraçando-me com força. - Que te fizeram, meu filho ? - Colocou as mãos nos meus ombros e mirou-me dos pés á cabeça. - Que te fizeram ? Onde estiveste ?
- Que é isso mãe ? Ninguém me fez nada. Só fui representar a peça de teatro. Mais nada.
Um dos policias aproximou-se:
- Se quiser, podemos levar o miúdo para ser inspeccionado e ...
- Não obrigada. - Cortou a mãe olhando para ele. - O meu filho já aqui está. Agradeço, mas já não preciso mais de vós. Agradeço que se retirem.
Os policias entreolharam-se.
- Bom, nesse caso...
Viraram as costas e saíram, fechando a porta atras deles.
- Filho, estava tão preocupada. - A mãe começou a chorar.
- Mas eu não fiz nada de mal, mãe. Só fui representar a peça de teatro para o meu amigo Tó.
A mãe ficou sem respiração. Tornou a olhar-me de frente.
De novo o Tó ...
De novo aquele homem...
Quem seria aquele homem ?


* * *


Nunca mais vi o Tó.
Uma semana depois, começaram as férias grandes. Passei para a escola preparatória. Tive muitos elogios. A mãe ficara muito satisfeita comigo.
Um dia entrei no quarto da mãe. Esta arrumava o armário do pai.
Estranhei, porque raramente a mãe ali mexia; e agora, havia roupa do pai espalhada pela cama e várias caixas no chão.
- Mãe ?
- Sim. - Nem olhou para mim.
- Porque é que nunca me fala do pai ?
Olhou-me então:
- Que queres saber, meu amor ?
- Como era o pai, essas coisas.
A mãe sorriu. Abriu uma caixa.
Agarrou numa mão cheia de fotografias.
- Este é o pai. - Olhava-as carinhosamente. - Aqui está o teu pai, António José.
Passou as fotos para as minhas mãos.
Ali estava ele...
Cabelo de ouro...
Olhos claros...
Pele limpa, sem barba nem bigode...
Não teria mais de quarenta anos...
Só lhe faltava o casaco azul marinho.
- Mas é o Tó, mãe !...
- O quê filho ?
Olhei a mãe nos olhos:
- Este é o Tó, o meu amigo.
- Filho, esse Tó não existe. Não vês...
- Existe sim mãe. Foi ele que me deu isto.
Levei a mão ao pescoço e tirei o fio de ouro que ele me tinha dado.
A mãe ficou atónita de boca aberta:
- Onde arranjaste isso ?
- Foi o Tó que mo deu.
- Filho, este é o fio de ouro do teu pai. Aqui está, o braço do Cristo, defeituoso. Onde o encontraste ?
- Já lhe disse mãe...
- Este fio desapareceu logo após a morte do teu pai. Nunca mais o encontrei...
- Foi o Tó que mo deu.
- Mas quem é esse Tó ? Que queria ele ?
- Ele só queria ser meu amigo e assistir à peça de teatro " Romeu e Julieta ".
A mãe ficou de novo calada.
Fora precisamente na noite da estreia da peça " Romeu e Julieta ", em que João representava o protagonista, que se dera o acidente. António morrera com o desgosto de não ver o filho representar.
Alice entregou o fio a João.
Não sabia que pensar.
Levantou-se lentamente e virou-se para cima da cama para continuar as arrumações, pensativa...
Agarrou numa cruzeta e pendurou nela o casaco preferido de António José: O casaco de fazenda azul marinho!...

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Poemas



Dizer não

Quantas vezes dizemos não

Quando queremos dizer sim.

Quantas vezes um sonho

Não passa disso mesmo!...

Um sonho.

Retenho lágrimas

Para não dar razão à razão

Quando o sonho de dizer sim

Nos aperta o coração

E nos dói!...

E dói...

Dói dizer não.

Quando os lábios dizem não quero

A alma diz não posso

E o coração diz... que te amo!...

Cada sim, dito não

É um pedaço da alma que se vai

Uma lágrima arrancada do coração...

As lágrimas retidas secam o coração...

As lágrimas choradas purificam a alma.

Agora,

Já não retenho o pranto

Que secou meu coração.

Choro sim,

De mágoa e de amor

Que a solidão na minha alma

Precisa de purificação