terça-feira, 18 de setembro de 2012

Senhora da Luz - ( parte 1 )

CAPITULO I 
     O mar está alto.  
     As vagas espumam ao colidirem com as rochas.
     O céu anilado desencobre, de quando em quando, o sol matinal, que rejubila e queima.
     E as ondas rolam na praia dourada, de areia fina e limpa.
     A brisa da manhã, fresca, emana já o cheiro do óleo de coco dos corpos estirados dos veraneantes.     
     O areal vai enchendo, a pouco e pouco, de toalhas coloridas e sombrinhas, quais cogumelos multicor semeados ao acaso. 
      Os pés nus do Zé pescador, calcam a areia molhada, sem pressa. 
     Vem só, cabisbaixo, puxando a rede vazia.
     Os ombros murchos tisnados pelo sol, vergam pelo peso de anos e anos de faina no mar. Mas desta vez está só, nem de peixe vem acompanhado. 
     E continua a caminhar, deixando para traz o rasto do desânimo de uma pescaria infrutífera. E logo a espuma apaga o rasto deixado, levando com ela a tristeza, deixada ao esquecimento. Passa invisível. Passa só, pelo meio de centenas.
     E continua a caminhada de corpo vergado de angustia. Sobe os degraus de pedra, ao canto da praia e atravessa a rua sem olhar, direito à tasca do retiro. Ali, pede um copo de tinto. Sem tirar os olhos do balcão, emborca-o de um só trago. Torna a encher, torna a beber.
     - Então Ti Zé pescador, a faina foi má ? - Quis saber o taberneiro.
     Anuiu com a cabeça ainda sem levantar o olhar.
     - Amanhã o dia será melhor... - tornou o tasqueiro.
     Bebeu mais um copo. Tirou duas moedas do bolso e saiu para a rua.
     A tasca encheu-se repentinamente com um bando de turistas barulhentos e alegres.
     A rua estreita de calçada fazia-o tropeçar de quando em vez. Com o corpo cansado e os olhos turvos, o vinho fazia-o embicar em qualquer paralelo mais saliente; e assim foi cambaleando até à porta azul da sua casa branca e baixa.
     Tia Alice, já tinha saído para a vila, com uma trouxa de roupa lavada, para entregar. Mas não se esqueceu de deixar na mesa, o prato e a panela tapada, com a sopa para o marido. Este nem olhou. Largou a rede no chão e foi directo para o quarto.
     Mal caiu na cama, adormeceu profundamente.


                                                                        * * *


     O sol levantou até ao alto.
     A praia ficou apinhada.
     Depois o sol tornou a baixar, lentamente, e quando começou a deitar-se sobre o azul do oceano, a praia já estava vazia. 
     Vazia ! 
     Não havia ninguém. 
    Só o Zé pescador voltava ao mar. Carregando a rede ao ombro, até para lá dos rochedos, onde se encontrava o pequeno bote, o " Zé Maravilhas ". 
     Meteu-se nele e remou firmemente, em direcção ao sol posto, afastando-se da costa.
     Ninguém mais viu o Zé pescador!... 

     O sol tornou a levantar-se. 
     O mar continuou a espumar na areia. 
     A praia começou a encher. 
     No ar, o odor de óleo de coco. 
     Os cogumelos começaram a abrir no meio do areal. 
     Mas, junto ao mar, na areia molhada, não havia nada. 
     Não havia marcas dos pés descalços do pescador. 
     As vagas não arrastavam a angustia e a tristeza de outra pescaria falhada.
     O Zé pescador não passou. Nem no molhe, atrás das rochas, se via o " Zé Maravilhas " por lado nenhum. 
     Os turistas continuavam com seus risos e brincadeiras. 
     Nenhum deu por falta da habitual passagem diária de Zé pescador. 
     Ninguém deu por falta do seu rasto deixado na areia pelos pés descalços e nus. 
     Já o sol tórrido estava a pique, quando no fresco e sombrio tasco a sua ausência foi notada:
     - Por onde andará o tio Zé pescador? 
    O grupo de pescadores de meia idade, encostados ao canto do balcão, abraçados com os copos de tinto, olharam o tasqueiro. 
    Um deles, encolheu os ombros. Levou o copo aos lábios.
     - Tem andado muito triste o ti Zé. A pescaria tem sido má... 
     - Faz dias que não consegue pescar nem um peixe para a janta.
     - O homem já está a ficar velho, e no pequeno “ Zé Maravilhas “ não se safa. 
     Os comentários continuavam entre um copo e outro. 
     De olhos turvos e semicerrados, um dos velhos pescadores fitava o mar azul: 
     - A esta hora o Ti Zé já costuma ter passado por aqui para beber o tintinho. 
     - Pois é – retorquiu o taberneiro. – Por isso estou a estranhar. 
     - Se calhar desistiu de ir ao mar. – Outro pescador olhou também o infinito. 
     – Não tem tido sorte nenhuma. 
     - Deve é ter ficado na cama, ou então veio mais cedo e passou aqui antes do retiro estar aberto.              Entreolharam novamente, acreditando nas suas certezas. 
     Quando a Tia Alice regressou a casa, de trouxa de roupa suja debaixo do braço, não estranhou a panela tapada. 
     Estranhou sim a rede abandonada no chão. Estranhou a cama feita. 
     - Deve ter-se perdido pelo retiro. – murmurou. – com toda a certeza está outra vez enfrascado com os amigos na tasca. A uma hora destas... 
     Tratou da faina. 
     Ao começar a escurecer, o Zé pescador não tinha ainda regressado. 
     Tia Alice franziu o sobrolho e olhou, por entre as cortinas rasgadas e imundas, através das vidraças quase opacas da pequena janela. 
     Estava a ficar preocupada. 
     Saiu. 
     Foi andando devagar pela rua, em direcção á tasca do retiro, espreitando a cada canto, esperando encontrar o corpo do marido, enrolado por ali, ensopado em vinho.
     Mas nada... O Ti Zé pescador não se via por lado nenhum. 
     Chegou á tasca. Entrou. Lá dentro, estava escuro e fresco. 
     Tia Alice deu uma olhada pela sala.
     O grupo de pescadores ébrios, tinha sido substituído por uma família de estrangeiros que lambiam gelados. 
     - Olá Tia Alice. 
     - Bom dia filho. O meu Zé ? 
     O tasqueiro encolheu os ombros: - Hoje não o vi, Tia Alice.
     Tornou a dar a volta á sala com o olhar.
     Depois saiu. 
     Caminhou lentamente pelo areal, que a pouco e pouco começava a esvaziar de turistas. 
     Atravessou toda a praia sempre de olhar perdido na linha do horizonte. 
     Subiu as rochas do molhe. 
     A corda que amarrava o “ Zé Maravilhas “, continuava presa no poste. 
     Mas a outra ponta jazia na areia. O “ Zé Maravilhas “ não tinha regressado nessa manhã. 
     Tia Alice, no cimo da rocha, mão em pala sobre os olhos, fitava o mar, o mais longe que conseguia.        Mas o mar só lhe trazia o odor a sal e a espuma branca que se sumia no areal. 
     O sol desceu... 
     O sol pôs-se... 
     O céu agora escuro, envolto no bailar das ondas, continuava a trazer o cheiro a mar e a espuma que já não se destinguia. 
     E trouxe-lhe um soluço. 
     Um grito ficou-lhe cortado na garganta. 
     Em vez disso, só conseguiu sussurrar: - Zé !... 
     De coração apertado, olhar atento, ouvido apurado, Tia Alice não conseguia sair dali 
     O olhar começou a ficar húmido, debaixo da escuridão da noite, uma lágrima rolou-lhe pelo rosto tisnado. 
     Não conseguia mover-se. 
     Não conseguia falar, não conseguia gritar. 
     Os seus lábios moviam-se lentamente, por entre as lágrimas, mas não conseguia mais que sussurrar:        - Zé...

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