quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Azul Marinho ( parte 1 )

Saltei do muro para o chão.
Foi fácil.
Apanhei um pau e comecei a bater nas folhas mais baixas das árvores. Numa correria louca, saltitando, de mochila ás costas.
Acabou o passeio.
Tenho que atravessar a rua. Olhei á direita, depois á esquerda, novamente á direita. A mãe recomendou-me que tivesse muito cuidado a atravessar as ruas. Mas eu tenho cuidado, sempre tive. Afinal, já sou um homenzinho. A tia Lina está sempre a dizer-me : " João, agora já tens dez anos, já és um homenzinho. " A mãe também me diz muitas vezes que eu sou o homem da casa. Se o pai não tivesse morrido, se calhar ainda era só um menino, mas assim, já sou o homem da casa e já vou sozinho de casa para a escola e da escola para casa.
O caminho parece estar livre. Não se vê nenhum carro.
Dei uma corrida e atravessei a rua.
Do outro lado, no passeio, há uma lata vazia de refrigerante.
Dou-lhe um chuto, depois outro e remato certeiro por entre as patas de um banco de ferro.
Golo !...
Perto do jardim, os pombos bicam no chão à procura de alimento. Coloco a mão no bolso à procura de um pedaço de pão, sobra do lanche, guardado para o efeito. Esfarelo-o entre as mãos e solto as migalhas pelo chão.
Uma nuvem de pombos, baixa em voo coordenado sobre a minha cabeça, para logo pousar no chão.
Fico a vê-los comer as minhas migalhas de pão, satisfeito.
Num banco de jardim, um homem de casaco de fazenda azul marinho olha-me sorrindo.
Ando mais um pouco pelo jardim e vou até á bica molhar os lábios, não que tenha sede, o calor ainda não aperta! Mal começou a primavera, com os seus fracos raios de sol, ainda sem calor.
Mais duas ruas e estou em casa, Passo pela lavandaria do senhor Chinês, a mercearia e o café. Aí paro um pouco na montra, para ver os frascos de rebuçados e chupa-chupas que lá estão, nas prateleiras de vidro.
De vez em quando, a dona Paula, do café, vem cá fora e dá-me um rebuçado. Colo o nariz no vidro e espreito lá para dentro.
Para minha desilusão, não é a dona Paula que lá está hoje. Talvez amanhã!...
- Queres um rebuçado ?
Olhei para cima. O homem do casaco de fazenda azul marinho olhava-me sorridente.
- Não obrigado. A mãe diz que não se devem aceitar coisas de estranhos.
Rodei nos calcanhares e segui o meu caminho. Passei o banco e a sala de cinema.
Olhei para traz, para o fundo da rua para confirmar se se aproximava algum carro. Tinha que atravessar. O homem do casaco azul, continuava parado à montra do café, olhando-me.
Empurrei a porta com força:
- Mãe ! Cheguei.
Dirigi-me à cozinha. A mãe tirava um tabuleiro de bolinhos do forno, colocando-o sobre a bancada.
- Como correu a escola hoje, meu querido ?
- Muito bem. O Francisco não sabia fazer uma subtracção e eu ajudei-o.
A mãe sorriu. Beijou-me a cabeça loura :
- És muito inteligente. Assim é que é, devemos sempre ajudar quem precisa.
Larguei a mochila no chão e fui direito ao tabuleiro dos bolinhos.
- Cuidado que estão muito quentes.
Claro que estavam quentes. Tinham acabado de sair do forno. A mãe pensaria que eu sou algum tolinho ?
Mas os olhos não despregavam dos bolinhos fumegantes.
- Vai para o teu quarto fazer os trabalhos da escola, e quando terminares, já podes vir provar os bolinhos, está bem ?
Olhei a mãe. Sorri-lhe.
- Claro que sim, mãe. Hoje tenho poucas coisas, só uma redacção e um desenho.
- Então vai lá, filho.



* * *
Uma hora mais tarde, voltei à cozinha:
- Mãe, já posso provar os bolinhos ?
A mãe preparava agora o jantar.
- Já fizeste os trabalhos ?
Entreguei duas folhas à mãe e tirei um bolinho do tabuleiro, sentando-me numa cadeira.
A mãe limpou as mãos e olhou as folhas.
O desenho consistia em três figuras; uma pequena e duas grandes. Uma com vestido cor de rosa e outra com pernas muito compridas, de negro, mas sem rosto.
- Quem são ? - Inquiriu a mãe.
- Somos nós !...
O pequeno e o de vestido cor de rosa...
- E este comprido, quem é ?
- É o pai.
Ela olhou-me. Eu continuava a mastigar os bolinhos.
De olhar triste, a mãe leu de seguida a redacção, em vos baixa.
" Um dia fui ao parque. Havia muito sol e os pombos comiam migalhas. Estava lá o Jorge, com o pai que é policia. O Zé também lá estava; o pai foi lá buscá-lo mais tarde. Eu fui sozinho. Brinquei muito com eles. Quando se fez tarde, o Zé foi embora com o pai, que o foi buscar. O Jorge também foi com o pai dele. Eu fiquei sozinho. Um senhor de casaco azul deu-me um rebuçado e depois fui embora, sozinho. Mas eu não tenho medo. Já sou o homem da casa. "
De olhar raso de lágrimas, largou as folhas e continuou a fazer o jantar.


* * *


Dei um chuto numa pedra.
Que era aquilo no meio do passeio ?
Curioso, espreitei.
Os homens da água tinham aberto um buraco no chão, para arranjarem os canos.
Fenomenal.
Havia uma vala com quase um metro de largo.
Agora tinha de saltar sobre ele.
Dei três passos para traz.
Depois, corri com muita velocidade, e pulei.
Parei do outro lado.
Tinha conseguido.
Tinha ultrapassado a vala.
Fenomenal.
Continuei pelo passeio, até ao jardim. Uma bola de jornais amarrotados estava ali, mesmo á minha frente.
Dei-lhe um pontapé e mais outro. A baliza ali estava à espera. Chutei com força. Mais um golo por entre as patas do banco de ferro.
Tirei o pão para os pombos. Esfarelei-o para o chão e sentei-me no banco. Os pombos bicavam no chão.
Alguém se sentou a meu lado, mas eu não liguei.
- Os pombos hoje estão com muito apetite.
Olhei para o lado. Era o homem do casaco de fazenda azul marinho. Fitava os pombos.
Tornei a olhar para eles.
- Eles já estão habituados a que eu lhes dê o lanche. Todos os dias lhes dou o resto do meu pão.
- Bem sei. Tenho-te visto fazê-lo. És o João, não és ? Olhei de novo para o homem.
Este agora olhava para mim.
- Sou. Como sabe ?
- Tenho ouvido o teu nome por aí. Penso que foi um pombo que mo disse. - Sorriu.
Sorri também.
- Eu sou o Tó. - O homem estendeu-me a mão. - Muito prazer.
Estendi-lhe também a mão.
Era muito simpático.
Não teria mais de quarenta anos, cabelo aloirado e olhos claros. A cara limpa, sem barba nem bigode. Camisa branca e calça preta. E, claro está, casaco azul marinho.
- Gostavas de ser meu amigo ? - Perguntou-me.
Encolhi os ombros. Na verdade tinha poucos amigos. Mas todos eles muito mais novos que o Tó.
Tó meteu a mão no bolso do casaco e tirou dois rebuçados.
Estendeu-mos.
Olhei-o nos olhos.
- Já não sou um estranho, pois não ?
- penso que não.
- Claro que não, agora somos amigos, não é ?
Agarrei nos rebuçados e desembrulhei um, que coloquei na boca.
- A tua mãe ensina-te muitas coisas, não é verdade ? Alice, a tua mãe, não é ?
- É. Ela é maravilhosa, ensina-me muitas coisas. E eu sou o homem da casa.
Tó sorriu . - Um homem muito valente, não ?
Anui, sorrindo.
- E o teu pai ? - Quis saber Tó.
- O meu pai morreu.
- Tens saudades dele ?
Olhei para os pombos.
- Ás vezes!... outras vezes não quero pensar nele. Ele morreu e não foi ver a peça de teatro da escola em que eu participava no primeiro ano. Todos os outros meninos tinham os pais a assistir. Só eu não. O meu pai morreu e a minha mãe também não foi. Acho que teve de o ficar a guardar ou qualquer coisa !...
- Ficas triste por já não teres pai ? - Tó tinha os olhos húmidos, brilhantes.
- Ás vezes !... Mas eu sou forte. Sou o homem da casa.
Olhei em volta.
Os pombos já tinham voado. Pus-me de pé num pulo.
- Está a ficar tarde. Tenho de ir embora. A mãe está á minha espera. - Sorri para o meu novo amigo. - Adeus, até amanhã.
Corri a toda a velocidade, atravessando o jardim, direito á bica, onde fui molhar os lábios.

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